segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Saracá

Escrevi isso em 2012 pra fazer parte de um livro que acabou não sendo escrito, sobre a missão no Amazonas. As informações estão em tópicos porque como muitas coisas aconteceram ao mesmo tempo, achei melhor focar em cada fato separadamente.

SARACÁ – MINHAS IMPRESSÕES

No dia 25 de setembro de 2011, ajudei a organizar uma viagem médico-missionária para a comunidade de Saracá, no rio Negro, e, durante uma tempestade, o barco tombou à noite, e uma pessoa faleceu.
Ao se aproximar o dia 25 de setembro de 2012, cenas voltam à minha mente em flashes:
1. O casal Dr. Aníbal e Dafne em clima de lua de mel.
2. A alegria de Dr. Ricardo e equipe ao ver a nova geração (acadêmicos) levando a frente.
3. A atitude de Raimundo Daniel em ir nadando atrás do detergente em lugar de Diego.
4. A alegria da comunidade ao receber os voluntários.
5. A predição de Roger Alves. Sua perspicácia.
6. O tombamento do barco.
7. O braço inerte de Dr. Aníbal.
8. O cuidado de Diego Jhonathan por Dieyne. Sua prontidão.
9. As lágrimas de Diego Jhonathan.
10. A bravura de Roger Alves.
11. O relâmpago sobre a mão de Dr. Ricardo.
12. O desprendimento de Diego Jhonathan.
13. O mistério de Bradley Mills.
14. A mochila de Roger.
15. O anjo de Dona Francisca Afra.
16. A corda azul.
17. A fogueira e as roupas.
18. O helicóptero e a praia.
19. O navio da marinha. O almoço e os camarotes.
20. A primeira chuva em missão após o incidente.

Seguem abaixo com mais detalhes:
1. O sorriso constante nos rostos de Aníbal e Dafne não deixava dúvidas de que eles estavam empolgadíssimos com a missão; e num clima parecido com o de um casal que tenha se casado há poucas semanas.

2. Dr. Ricardo também não podia esconder a alegria de poder voltar ao Saracá; especialmente numa viagem de iniciativa dos jovens. Havia dez anos que não retornava lá, e demonstrava a alegria de rever amigos e especialmente a moça que tinha feito uma cirurgia cardíaca graças ao projeto.

3. Raimundo Daniel mostrou a união e companheirismo de colegas antigos. Foi nadando cerca de quinhentos metros atrás do frasco de detergente que Diego Jhonathan havia derrubado do barco.

4. A comunidade prontamente recebeu os voluntários com um “Feliz Sábado!”, e o sorriso de Dona Raimunda foi marcante durante todo o dia; a expressão de alegria também era vista nos rostos dos outros ribeirinhos.

5. Roger Alves advertiu, momentos antes: “Esse barco pode virar” Após começar a chover, disse que não iria dormir aquela noite. Sem dar importância, eu deitei-me tranquilamente para dormir, em meio ao barulho da chuva. Momentos mais tarde, com o acidente, ele estava em posição avantajada para
se salvar, e ainda apto para salvar outros. A partir daí, conheci as virtudes de precaução e perspicácia de Roger, que ficaram patentes a todos.

6. Por uns instantes, fiquei debaixo d’água, e totalmente desorientado. Um banho de água fria de cabeça para baixo. Felizmente, logo encontro ar. Tudo é escuridão, gritos e água. Meus pensamentos vão diretamente para as duas moças, Hildchen Litaiff e Joany Sales, que estavam no mesmo convés, e cujas mães haviam confiado à minha proteção naquela viagem. Grito seus nomes. Respondem. O ABCDE do ATLS vem com rapidez à minha mente: A de Aiways, ou seja, a prioridade no resgate são as pessoas que não estão respirando, nesse caso, as que estão ainda embaixo d’água. O barco apenas tombou de lado, de forma que as pessoas puderam se apoiar no barco com segurança. Após gritar os nomes das outras pessoas do mesmo convés, e notar que todas estavam bem, meus pensamentos se dirigiram aos passageiros do convés inferior. Passo por uma passagem na tela de mosquito (que Diego prontamente havia feito em socorro a sua amada Dieyne) e me dirijo diretamente à janela do camarote da proa. A água ocupava toda a cabine, e estava ao nível da janela. Rasgo a tela de mosquito e coloco meu braço para dentro da janela, tentando apalpar algo, enquanto tento lembrar quem eram os ocupantes daquela cabine, dos quais eu mal sabia os nomes.

7. Imediatamente, toco num braço inerte. A sensação de pelos me dá a pista de ser do Dr. Aníbal. Grito por ajuda. Olho ao redor. Em poucos segundos, aquele lado do barco, outrora vazio, havia se enchido de pessoas. Umas sendo salvas de dentro do barco naquele exato momento, outras vagueando com os sentidos entorpecidos pelo choque; e outras lutando para se manterem seguras. Chamo por Roger. Ocupado.

8. Olho para a frente e vejo, em meio à tempestade, a mais linda cena de amor e cuidado. No ponto mais alto do barco, enquanto muitos ainda estão procurando onde se segurar, vejo Dieyne com um colete salva-vidas, abraçada a Diego, também de colete, que a confortava. Chamo o Diego para me ajudar; ele vem, relutante, mas Dieyne o encoraja. Juntos, removemos o corpo imóvel de Aníbal de dentro da cabine. Sua cabeça estava presa pela moldura da janela; assim ajeitei com a mão para ela passar para fora da janela, de modo semelhante ao que os médicos fazem para facilitar a saída de um bebê do útero, no início da vida. De fato, Aníbal estava voltando para uma nova vida.

9. Rapidamente, tento sentir os pulsos radial e carotídeo de Aníbal, e vejo que encontra-se aparentemente num quadro de parada cardíaca. Então, Diego e Bradley (que aparece de repente) levam Aníbal até uma parte mais elevada e Diego inicia as manobras de reanimação cardiopulmonar. Diego é estudante de Medicina da Universidade do Estado do Amazonas, e, durante muitas vezes na
faculdade já havia ouvido sobre como fazer tais manobras, e já havia até treinado em bonecos, mas nunca havia feito em um paciente real, muito menos em situação tão estressante como esta. Bradley estava assustado demais para ajudar Diego com as respirações, de forma que Dr. Ricardo chegou para ajudar. Entre uma insuflação e outra, Dr. Ricardo levanta os braços e clama ao Senhor por auxílio, chorando e olhando para o céu. Diego, emocionado com a cena, continua as massagens com empenho, enquanto mistura suas lágrimas aos pingos de chuva que caem sobre o peito frio de Aníbal.

10. Logo que retiramos Aníbal, coloquei todo o meu braço no interior da cabine, tentando apalpar a a esposa de Aníbal. Como os dois deveriam estar dormindo, ela provavelmente estaria próximo dele no momento do acidente, e o corpo dela não deveria estar muito longe dali. Não pude sentir nada. Alguém precisava mergulhar no camarote para procurar a moça. Nesse momento, Roger Alves chega. Olho para ele. Temeroso por dentro, mas querendo inspirar confiança, digo: “Alguém precisa mergulhar no camarote para procurar a moça! Você vai?! Se você não for, eu vou!” Com essa frase,
tiro de mim a obrigação inicial de ir primeiro, ao mesmo tempo em que mexo com o brio masculino de Roger. Com a confiança que costuma assinalar suas afirmações, Roger diz “Eu vou!” Não foi a intimação que movera tal atitude. Momentos antes, já havia salvo da morte certa duas pessoas; e com a confiança renovada, encarava esse novo desafio. Segurando em minha mão, desceu ao interior da cabine, com a vida nas mãos de alguém que ele mal conhecia. Depois de algumas buscas frustradas, eu mesmo, que conhecia melhor o barco, desci e procurei pela moça. Lembro-me da sensação horripilante de estar sem respirar em um camarote fechado embaixo d’água sem enxergar 10 centímetros à sua frente, e tendo como única saída uma pequena janela de cerca de 40 por 70 centímetros, parcialmente obstruída por um grosso colchão de espuma que era pressionado contra a janela, pela força do empuxo. Não era possível vermos nada dentro do camarote; e nosso método de busca consistia em apalpar as paredes enquanto se movimentava os braços e pernas na esperança de tocar em algo que pudesse ser o corpo de Dafne. Nesse ínterim, embora não tenhamos nos desviado do objetivo, pudemos notar que Aníbal voltara e já estava andando, o que trouxe alegria e esperança por um instante.

11. Após reanimar Aníbal, Diego se junta a mim e ao Roger nas buscas por Dafne. Para facilitar o mergulho, ele deixa todas as roupas irem com as ondas e desce ao camarote só de sunga. Desce com uma corda presa ao braço, para poder ir mais longe. Ficamos nos revezando no mergulho, eu Roger e Diego. Cada vez que mergulhava, tinha a esperança de encontrar Dafne, e trazê-la para a superfície. Ao voltar, o alívio de encher os pulmões era misturado à frustração de mais uma busca sem sucesso. Vale notar que o senso de perigo e de autoproteção estava bastante diminuído, tendo em vista o estresse emocional da situação. Dessa forma, fomos ousados e entramos profundamente no camarote. Como era uma suíte, entrei também no banheiro. Fui até a proa, por dentro do camarote, e também até o corredor que dava passagem para a cozinha, até o limite da corda presa a meu braço, que infelizmente não permitia ir mais fundo.

12. Como mencionado anteriormente, no momento inicial fiquei alheio aos acontecimentos que ocorreram simultaneamente em outras partes do barco no momento do acidente. Estava concentrado no salvamento dos ocupantes do camarote da proa. Nesse período aconteceram todos os salvamentos dos outros voluntários que haviam ficado presos. Portanto, descreverei tais episódios segundo as informações colhidas, posteriormente, dos próprios voluntários. Nos momentos que antecederam a virada, Roger Alves encontrava-se preocupado e decidira não dormir. Estávamos nas redes, no convés superior, que era uma área sem divisões, com teto, e aberta por todos os lados. Uma cerca de madeira protegia as laterais, e toda a abertura era protegida por uma frágil tela de mosquitos. Por causa da chuva, haviam sido baixadas lonas laterais, que protegiam os ocupantes. Roger percebeu que a força do vento sobre as lonas estava fazendo o barco virar. Rapidamente, começou a levantá-las. Ao ver isso, Hildchen e Joany, que estavam acordadas, começaram a sair de seus sacos de dormir para ajudar Roger. Dona Ruth também se levantou. Foi a salvação das duas moças. Antes que terminassem de livrar-se completamente dos sacos, o barco virou. Nesse instante, Roger corre em direção à popa (parte de trás do barco) e pula, de cabeça, para fora, antes de o barco ter terminado de virar. Desesperadamente, começa a nadar em direção à praia, a cerca de 300 metros. À sua mente, vêm os pensamentos “Serei o único sobrevivente?” e “Preciso me salvar para ajudar minha família!”. Roger é natural de Manicoré, pequeno município do interior do Amazonas. Sem pai e com muitos irmãos, Roger conseguiu a façanha de ser admitido na Faculdade de Medicina da Universidade do Estado do Amazonas. Com a esperança de ele crescer na vida, e ser um apoio à família humilde, a notícia foi recebida com alegria a todos os parentes. Agora, com a morte diante de si, Roger se lembra da família. Precisa sobreviver para ajudá-los. Saiu nadando em meio à escuridão. Apenas o ar em cima e a água embaixo. Nenhuma luz. Assim como a Terra, no princípio. Após algumas braçadas, olhou para trás temendo ver o pior, e viu que o barco não tinha afundado. Pensou que alguém poderia estar vivo, em perigo, e a esperança o fez retornar ao barco. Subiu na parte traseira do bordo direito do barco e, sem ver ninguém, começou a quebrar as janelas e a gritar “Tem alguém aí?” As ondas eram fortes desse lado do barco e, somente quando recuavam se podia alcançar a parte interna mais inferior do convés inferior. Além disso, o breu da noite limitava a visão. Roger já havia quebrado a segunda ou terceira janela, quando, por uma estranha coincidência, a onda recuou e ao mesmo instante um relâmpago iluminou a noite; e à frente dos olhos de Roger apareceu uma mão, estendida, ainda sob a água, no interior do barco. Não se via o corpo, entulhado sob os objetos. Sem demora, Roger puxou a mão com toda a força e o Dr. Ricardo faria apareceu na superfície, buscando o ar desesperadamente. Logo atrás dele, surge o Dr. Renato, que estava ainda mais no interior do barco, preso sob o Dr. Ricardo. Ambos respiram e estão bem, apesar de grandemente chocados.

13. Nesse instante, Roger vê Bradley andando desnorteado pela lateral do barco. Os três (Bradley, Ricardo e Renato) estavam dormindo no mesmo camarote, e no instante do acidente, correram desesperadamente para a cozinha do barco, em busca da saída. Brad foi à frente, seguido por Ricardo e Renato. Brad se lembra de ter ficado preso por uma mesa, na cozinha, e depois só se lembra de estar andando seguro na lateral do barco. Ver relato do próprio Bradley para mais detalhes sobre esse incidente.

14. Havia mais um camarote no barco, onde quatro pessoas ficaram presas. Esse ficava no convés principal (e não no porão do barco como os outros dois). Nele, estavam Elisangela, Cione, Dona Francisca e o Paulo....

Não concluí na época, então vou completar agora.

14. Na mesma noite, Paulo saiu com uma equipe numa voadeira pra buscar as bolsas das pessoas do barco. Todas foram encontradas, inclusive meu saxofone dentro da capa, que estava boiando. Esse é o saxofone que ganhei quando tinha sete anos e que uso até hoje. Tudo foi encontrado, exceto a mochila de Diego Jhonathan. Alguns dias depois, ela foi boiando até uma casa de praia, e as pessoas de lá conseguiram fazer contato com Diego com as informações que tinha nas coisas da mochila. Marcaram com ele de entregar as coisas na casa deles em Manaus, no condomínio Parque Residências. Diego foi até lá de moto, agradeceu e buscou a mochila. Quando voltou para a moto, percebeu que tinha esquecido a chave na casa da pessoa. Voltou à casa da pessoa para buscar a chave, e a pessoa perguntou sobre o celular, que Diego tinha perdido no naufrágio. Diego falou que por enquanto estava sem celular. Então a pessoa foi e deu para ele um celular que não usava mais, mas que ainda assim era muito moderno para a época.

15. Havia mais um camarote no barco, onde quatro pessoas ficaram presas. Esse ficava no convés principal (e não no porão do barco como os outros dois). Nele, estavam Elisangela, Cione, Dona Francisca e o irmão Paulo. Paulo, Elisângela e Cione conseguiram sair assim que o barco estava virando, mas dona Francisca ficou para trás. Ela era a cozinheira da missão. Uma senhora viúva muito simpática, que havia trabalhado em lanchas muitas vezes com seu falecido marido, e tinha aceitado o convite para ir viajar dois dias antes de sairmos! Ela foi inundada pela água que entrava com violência no camarote, então levantou as mãos para o céu e pensou "Meu Anjo! Estou preparada! Pode me levar!" Nesse instante, Paulo alcança sua mão e a puxa para fora!

16. Realmente não estou me lembrando da história envolvendo uma corda azul. Lembro vagamente que levei uma corda, que deve ser essa, e que depois vi as pessoas usando para alguma coisa, mas infelizmente não lembro de mais nada.

17. Quando chegamos à praia, fui à comunidade telefonar para minha mãe e dizer que eu estava bem. Uma coisa rara no interior, essa comunidade tinha sinal de celular, e eu usei o de uma pessoa emprestado. Os ribeirinhos fizeram uma fogueira para nos aquecer, e trouxeram roupas secas para nós, e dormimos ali na praia.

18. Acordei com o barulho das hélices de um helicóptero. Alguém tinha acionado a marinha e eles estavam checando a situação.

19. Fomos evacuados em um navio da marinha. Ofereceram camarotes para ficarmos deitados, mas o susto ainda estava muito forte e preferimos ficar ao ar livre mesmo.

20. Após o acidente, minha próxima viagem missionária foi em um catamarã. É um barco com dois cascos, e o risco de tombar é praticamente zero. Mesmo assim, quando começou a chover, peguei uma capa de chuva e fiquei lá fora até a chuva passar. Depois me acostumei, mas sempre com precaução.

Gabriel

Diário de Bordo - Experiência no Exército Brasileiro - Logbook.

Vou registrar nesse post algumas experiências que passei enquanto servi no 7o Batalhão de Infantaria de Selva em 2015. Este é mais pra um logbook, pra registro, sem muitas reflexões, por isso as informações podem parecer meio "jogadas".

UIRAMUTÃ

A princípio, eu ia ficar em Uiramutã uma ou duas semanas, até o próximo médico vir me substituir. A viagem para lá foi o percurso mais acidentado que já fiz na vida, e talvez o mais bonito e perigoso. Algumas pontes de madeira davam medo. Filmei com o celular alguma coisa. Soube que outro médico que tinha servido antes teve dois dos pneus furados e teve que esperar um guincho. O tempo foi passando e a vinda do médico se atrasava. Nesse período por  vezes faltava água, às vezes energia e às vezes internet. Um dia, durante a visita do comandante da companhia (2a Companhia do 7o Batalhao de Infantaria de Selva), o Major Zanini, faltou água, internet e energia ao mesmo tempo. Fizemos missões de ajuda humanitária nas comunidades ao redor, e o caminhão, a 5 ton, tinha que passar por pontes de madeira às vezes bem precárias. Em uma dessas passagens, o chefe de viatura (oficial mais antigo da viatura) falou pra passar pelo riacho, sem confiar na ponte; e ficamos atolados, esperando outra viatura rebocar. Houve uma revista surpresa aos armários dos soldados, e eu fiz uma apreensão de drogas no armário do soldado X, que foi preso e depois transferido para Boa Vista. Em um dos sábados, fui escalado como oficial de dia, mas me recusei a portar a arma, que ficou com o Ten. Luciano, comandante do Pelotão. Havia muitos mosquitos no meu quarto. Nos momentos de isolamento, chegava a conversar com eles, quando desistia de tentar matá-los. Houve um caso de coqueluche, do sargento de saúde que trabalhava também no posto de saúde local, que atende pessoas de fora do Brasil. Como ele tinha identidade indígena, foi removido de avião pela SESAI. Os aviões pequenos eram chamados de Papatango, pela sigla PT que levam, do alfabeto fonético internacional. Dei uma instrução de drogas e outra de primeiros socorros. Na instrução sobre drogas, falei sobre o álcool ao final. Logo depois da instrução, ia acontecer um churrasco no pelotão com bebida alcóolica. Em uma das instruções de tiro que acompanhei ali, pude disparar com pistola e fuzil. Houve um tiro acidental do subcomandante, mas foi em direção ao chão e não houve feridos. Diversas vezes, o Dr. Jaime, que ia me substituir, tentava se dirigir ao pelotão, mas a vinda dele era adiada, de forma que eu já estava há mais de 30 dias lá. Uma caixa com latas de carne vegetal da Superbom que um amigo de Boa Vista (o Felippe) mandou foi o que me salvou. O feijão do rancho geralmente tinha bacon, e às vezes o arroz também. Em um dos dias, só o que tive pra comer era alface. Em outro, nem alface. Emagreci. Foi quando li a respeito das provações que duraram quarenta dias na Bíblia. É algo que se repete. Senti que comigo ia ser a mesma coisa. Quando estava com 37 dias, me disseram que no dia seguinte seria rendido, o que acabou sendo frustrado e adiado para o dia 39 da minha estada lá. Foi quando percebi que também seria frustrado naquele dia e adiado para o dia 40, para ser correspondente ao que tinha lido. E foi dito e feito. No dia 39 não veio ninguém, e sim no quadragésimo, quando saí de lá, confiante de que Deus tinha um propósito para aquele período.
Em Uiramutã também foi onde encontrei uma família de adventistas que tinham se convertido na Guyana por missionários do Gospel Ministries International, com uma história incrível, que relatei em outro post.

BONFIM

Indo de 5ton de Boa Vista a Bonfim, um dos pneus estourou e fez um barulho parecido com tiro de fuzil. Eu estava na carroceria. Ela desviou para a outra pista, da contramão, mas graças a Deus não vinha nenhum carro.
Durante uma visita a Lethem com o irmão Celso, ele cochilou ao volante e desviou o carro para a outra pista, voltando justamente a tempo de passar uma caminhonete que vinha. Estávamos o seguindo e vimos tudo de perto. Graças a Deus pelo livramento.
Em uma remoção de militar com lesão de tendão do joelho por futebol, de Bonfim a Boa Vista, uma ave (carcará ?) se chocou contra o vidro da frente da ambulância e o destruiu.
Devido à grande quantidade de lesões tendinosas no futebol, o esporte foi proibido no pelotão pelo Major Zanini.
Os dois sargentos que estavam há mais tempo em Bonfim eram o Sgt Bezerra e o Sgt Ferreira, que dirigia a ambulância. Os sargentos de saúde eram o Sgt Vanderson e a Sgt Cleo, um casal. Ele é guerreiro de selva.

SURUCUCU

Surucucu foi o pelotão de fronteira mais isolado que já fui, mas também o que tinha melhor conexão com a internet. A pista de pouso recebe o nome do Ten Nogueira, um tenente médico, que faleceu em um trágico acidente aéreo com helic[optero naquele pelotão. A história tem similaridades com essa notícia e essa também de 2011.

Update - Missão na Angola

Faz muito tempo que não postamos! Muita coisa aconteceu. A ideia de criar esse blog era pra ir relatando as experiências que teríamos em Angola nesse ano, 2018. Sim, "teríamos". Vou explicar o que aconteceu.
Estávamos muito empolgados, tínhamos tido contato com pessoas de lá da Angola, já estava certo o apoio financeiro do AHI junto à Divisão Sul-Americana, fizemos o curso "Passaporte pra Missão" e terminamos tudo pelo Serviço Voluntário Adventista. Só faltava o visto para comprar as passagens e estaríamos partindo. Chegamos a relatar aqui no blog nossa primeira ida ao consulado Angolano. O tipo de visto que precisávamos não é o mais simples, mas um especial para pessoas que vão pra trabalhar em causa humanitária/religiosa por período de 1 ano, como era o nosso caso. Pra isso, precisávamos de uma carta da Igreja na Angola, que nos receberia. Essa carta precisava, antes de tudo, passar pelo ministério de relações exteriores da Angola pra podermos usar aqui. A obtenção dessa carta foi um dos passos mais demorados.
Como havia disponível para o Hospital do Bongo um aparelho de Ultrassonografia que não estava sendo usado, decidimos que eu devia fazer um curso básico de Ultrassonografia, de 30 dias, em Ribeirão Preto-SP. Então, em maio deste ano, fomos pra lá, enquanto aguardávamos a tal carta. Ela chegou, enfim, e fomos ao consulado em São Paulo, mas continha erros. Solicitamos a correção, voltamos ao consulado. Diga-se de passagem que a qualidade de atendimento que tivemos no consulado de Angola em SP foi das piores possíveis. À parte disso, não podíamos argumentar muito com o que tínhamos em mãos, porque o documento vindo da Angola estava realmente com detalhes mal escritos. Toda essa ida e vinda ao consulado nos custava hotel em São Paulo, combustível, e todos os custos do curso de USG, que não foi barato. Tinha saído da residência médica com a ideia de já começar a trabalhar na missão em seguida, portanto não tinha emprego, e nossa reserva foi se esgotando. Oramos muito a Deus a fim de saber se devíamos continuar tentando. O AHI até votou nos prestar auxílio financeiro enquanto esperávamos, mas não aceitamos receber dinheiro sem estar trabalhando. Voltamos tristes de SP para Campos-RJ, e comecei a dar plantões como clínico para nos sustentar. Aos poucos, fomos nos reerguendo financeiramente, alugamos um apto na cidade (até então estávamos na casa dos pais de Yarin) e fomos mobiliando. Após orar, sentimos que devíamos focar em subspecialização, e estou me preparando pra fazer provas de especialização em Cirurgia do Aparelho Digestivo. As provas serão em Novembro. Ore pra que seja feita a vontade de Deus. Deus é tão incrível que me deu de presente uma viagem de 2 semanas ao Níger, na África, no meio disso tudo (merecia um post só dessa missão). Fui em julho deste ano. Uma experiência incrível. Estamos no momento, crescendo como casal, como indivíduos e como profissionais. Yarin está trabalhando com costura, que ela ama, e eu estou aprendendo muito trabalhando com urgência e emergência clínica. Colocamos nossa vida nas mãos de Deus e Ele vai à frente. Por enquanto, estamos sendo missionários locais, servindo a comunidade ao nosso redor, aqui na cidade, no Brasil, e a nossa igreja local. O plano é voltar a pensar em missões transculturais assim que terminar a nova residência médica, mas quem pode dizer o que Deus tem preparado?
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Obs.: Aconteceu uma história interessante quando estávamos em Ribeirão Preto. Não havia hoteis disponíveis na primeira semana, porque estava ocorrendo um grande evento na cidade. O único lugar que encontramos vaga foi a Pousada do Sr. Ademir. Não era o que queríamos, mas foi onde pudemos reservar. Lá, Yarin ouviu a esposa do dono conversando sobre profecia e decidiu ajudar. Foi aí que estudamos a Bíblia com ela alguns dias. Ela ficou encantada com o que estava revelado nas profecias de Daniel e Apocalipse, o que para ela era muito confuso. Quando fomos embora, ela quis uma Bíblia Andrews, igual à nossa, e acabou comprando. O mesmo irmão colportor que vendeu a Bíblia, se comprometeu a voltar e fazer uma visita missionária para ela. Ficamos muito felizes com isso, e pensamos que se tudo o que aconteceu com a gente foi pra levar luz a essa única alma, então sentimos como se tudo tivesse valido à pena.

quarta-feira, 11 de abril de 2018

Saved by Two Dogs


Esse post é a versão em inglês do post "Salvos por Dois Cachorros". Fiz pra um relatório de missão e resolvi postar aqui.

In march 2010 I volunteered as a translator for a Loma Linda University mission trip towards Rio Negro river in the brazilian Amazon. As a medical student, I was also interested in the medical work as well. In one of the villages, a boy had been diagnosed by our volunteer pediatrician with Tetralogy of Fallot, a heart defect present at birth that if left untreated would lead him to almost certain death in the next years. The University was helping to provide the surgery for this boy, and one of their journalists, Patricia, was filming a documentary about the boy.

Patricia filming in the village
Dr. Ricardo, one of the brazilian doctors reminded that, in 2001, a group of volunteers from the Adventist Hospital in Manaus had diagnosed the same disease in another kid during a medical mission trip to a nearby village. The girl, named Gisele, was submitted to surgery and had a normal life (she later was also baptized and became a Seventh-Day Adventist). Then Dr. Ricardo suggested Patricia to also film Gisele's story and film her. Everybody agreed. Gisele's village, Saracá, was some couples of miles down the river. Then, all the volunteers stayed at the big boat while Dr. Ricardo, Patricia, a friend of her that would be the reporter, one of the crew and I left for Saracá in on the small boat.
Small boat
It was the middle of the afternoon when the boat engine suddenly slowed down and finally stopped, in the middle of the river! River navigation here follows a rule that says that every boat that is going downstream should go in the middle, while the ones going upstream should be on the margins. That makes sense because the river is faster in the middle, which helps the person going in the same direction of the river. We were downstream, so we were far from the margins. The crew man started to work on the engine, but wasn't having any success.
Stopped engine

The volunteers stranded
There were no boats in sight for us to ask help. Dr. Ricardo also know about boats, but couldn't help either. The american volunteers seemed not much aware of how bad the situation was. We prayed and the man continued working on the engine, but it remained unable to start. Soon it was going to be dark, and we needed to at least reach the margin. I asked Dr. Ricardo if I could jump in the water and slowly pull the boat aside, with a rope, and he consented. So we slowly approached the margin and were able to disembark.
Pulling the boat to the margin
We stopped at a beach surrounded by the forest. The crew man continued working on it while Dr. Ricardo was walking aroung looking for firewood to start a bonfire, in case we needed to spend the night there. However we had nothing to start the fire. Then, Dr. Ricardo asked me to translate for the girls asking if they had in their bags anything that could make fire. When I explained why we were thinking on making a bonfire, they seemed more desperate and started to prepare and became ready to make some noise if any boat passed by.
Trying to fix the engine
The boat at the beach
The sun was almost setting down when we spot a canoe going up by far from the margin. It was a hunter and his two dogs. The man was in the back of the canoe next to the engine, and because of its noise, could not hear our cries and whistles from the margin. He didn't notice us shaking our arms and lifejackets. He was almost going away from us when somehow the dogs noticed our movement and called his attention to us. He, then, turned around and gave us a ride back to our big boat and the rest of the group.
The hunter and the volunteers back to the big boat.
He is holding a Bible I presented him with.

The hunter's dogs
It was already dark when we arrived. Dr. Ricardo payed for the ride, and I gave him a Bible. In the Holy Book, God used crows to feed Elijah, a big fish to save Jonah, and a donkey to save Balaham's life. I believe that in this trip He used those two dogs to rescue us. That we may put ourselves in God's hands and feel His guidance in our lives.

Gabriel

Update

Essa semana visitamos o consulado da Angola e conseguimos nos sentir um pouquinho já naquele país. Soubemos que a única coisa que falta praticamente é a carta-convite que será emitida pela União na Angola que irá nos receber. No momento, a expectativa é que essa carta fique pronta o quanto antes, se possível antes do fim de Abril. Vamos manter o blog atualizado de acordo com o que for acontecendo.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Atualização - Missão na Angola

Estou escrevendo essa postagem para manter o blog atualizado sobre o que já tem acontecido e o que ainda falta. Em janeiro estivemos na Universidad Adventista del Plata, onde foram bastante receptivos conosco, fizemos amigos, encontramos família e pudemos ter uma experiência única no hospital adventista mais antigo da América do Sul. Fizemos o curso "Passaporte para a Missão", e a aplicação no site do AdventistVolunteers.org e agora estamos aguardando os próximos passos de tirar os vistos e comprar as passagens.

Gabriel

sábado, 6 de janeiro de 2018

Combinação Perfeita

" Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e encontrareis; batei, e abrir-se-vos-á. "
Mateus 7:7
Em janeiro de 2012, me voluntariei para participar de uma viagem missionária às comunidades próximas a Barreirinha-AM, durante as férias da faculdade. Na base do Projeto, em Manaus, e ficamos alguns dias aguardando os reparos finais no Catamarã, barco com nome de Salva Vidas II que havia sido doado de um senhor da Flórida para a missão no Amazonas.  É um barco muito bom porque tem dois cascos (vide foto), e isso dá uma boa estabilidade. Em cada casco há um motor, e no meio há um vão. Ao final de alguns dias, o barco estava pronto para zarpar. A equipe consistia no comandante Joca, o coordenador da base de Barreirinha enfermeiro Daniel Lessa, sua esposa enfermeira Náissen Lessa, e um casal de obreiros que iria ficar em uma das comunidades, além de mim. Eu estava no quarto ano de Medicina e podia ajudar com os atendimentos. Além disso, tinha tirado uma licensa para pilotar barcos, e poderia auxiliar no leme. 


Catamarã sendo preparado para sair na missão

Daniel Lessa, coordenador da base de Barreirinha

Naissen Lessa, esposa do Daniel e enfermeira

Joca, no comando do barco, e o obreiro

A mascote do Catamarã

Outra foto da mascote do Catamarã

O plano era descer pelo Rio Amazonas até a entrada do paraná do Ramos (paraná é um atalho de água, ligando dois rios, ou dois pontos do mesmo rio), e depois seguir por esse paraná até Barreirinha. Quando estávamos talvez na metade do trajeto pelo rio Amazonas, o Joca permitiu que eu assumisse o leme por algum tempo, pra ele poder descansar. Eu estava feliz pela oportunidade de ajudar. Depois de algum tempo, percebi que o barco estava muito devagar, apesar da força normal do motor. Pedi ajuda do Daniel. Então vimos que apesar dos dois motores estaresm ligados, apenas um lado causava espuma na água. Paramos o barco em uma margem e Joca mergulhou pra ver o que havia de errado.

Joca se preparando para mergulhar e ver o que há de errado com a hélice (palheta)
Na água
Na água 2
Notamos que aquele lado estava sem hélice (chamada de "palheta)". Por algum motivo, ela havia se soltado e se perdido nas profundezas do Amazonas (que pode chegar a 100 metros de profundidade). Havia outra palheta sobressalente no barco, mas ela não se prendia ao eixo do motor porque faltava uma peça, uma "chaveta", que se encaixa ao mesmo tempo na hélice e no eixo, dando firmeza. Na foto abaixo se vê um exemplo do local onde se encaixa a chaveta.

Exemplo de hélice de barco com uma fenda para a chaveta

Sem a chaveta a hélice não se firmava, e quando o motor era ligado, soltava-se e se perdia no rio. Tentamos improvisar utilizando pedaços de metal no lugar da peça, mas não dava certo. Como é um barco estrangeiro, os ribeirinhos também não possuíam esse tipo de peça. Tristemente, tivemos que parar. Passaríamos a noite numa margem, e pela manhã voltaríamos a Manaus pra procurar a peça. O irmão obreiro teve que descer pra ajudar a manobrar o barco, que estava com apenas um motor funcionando.

O irmão teve que descer para ajudar a manobrar o barco
Depois de tanto tempo, teríamos que voltar por causa da falta de uma peça de metal de 4 centímetros, quadrada (na verdade um prisma quadrangular), do tamanho de um parafuso! Além disso, nem sabíamos se a acharíamos em Manaus, visto que era um barco americano, de peças diferentes do comum. Oramos a Deus. Eu particularmente orei bastante aquela noite. "Senhor, o senhor nos trouxe até aqui para voltarmos?!" "Será que em todo esse barco não há nenhuma peça que sirva?!" "Se existe essa peça, por favor me mostre", era a minha oração. 

No dia seguinte, revirando todas as ferramentas e materiais do barco, em oração, encontrei uma maçaneta de porta sobressalente, mais ou menos como a dessa foto.

Maçaneta
A peça de encaixe da maçaneta na porta era de metal, quadrangular, exatamente do tamanho que faltava na hélice. Ela se soltava da maçaneta, de forma que não foi preciso serrar. Colocamos na hélice e encaixou perfeitamente, como uma luva! Ligamos o motor, e a peça passou no teste! Glória a Deus! "Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e encontrareis". Não sei os motivos dEle, mas sei que às vezes Ele permite que certas circunstâncias aconteçam para que O busquemos e encontremos firmeza nas Suas promessas, fortalecendo nossa fé. Esse episódio ficou bem marcado, e certamente fortaleceu a fé de todos que estavam iniciando aquela viagem a serviço de Deus. A viagem prosseguiu e cumpriu o objetivo nas comunidades próximo a Barreirinha, no rio Massauari.

Culto de pôr-do-sol após tudo resolvido, seguindo viagem

Equipe do Salva-Vidas II

Daniel fazendo retirada de corpo estranho em coxa (pedaço de madeira)

Aplicações de flúor

Presentes dos pacientes
Mais flúor

Saindo de voadeira. Boné improvisado com papelão.

Chuva

Soninho após o almoço

Zzz...
Oi? Comida?




Gabriel

Missão no Rio Copeá

Em julho de 2011 participei de um evangelismo na comunidade de São Francisco do Camarão, no rio Copeá, perto de Coari. Esse rio corre paralelo ao Solimões, então serve de rota de tráfico de drogas, longe do rio principal. Os ribeirinhos compareciam as reuniões, e gostavam muito de ouvir o Pr. Luís Goncalves. Após vários irmãos aceitarem a mensagem, preparamos uma praia para receber o batismo. Era na outra margem do rio, uma praia de areias claras, mas cheio de plantas aquáticas tipo aguapé (esqueci o nome que os ribeirinhos usam pra essa planta).
Aguapé
Então limpamos as plantas e fizemos uma ornamentação em formato de cruz sobre a água, olhando de cima, com flores locais. Num momento enquanto estávamos dentro da água, um dos irmãos foi ferroado por uma arraia. Elas ficam camufladas sobre a areia embaixo d'água, e têm uma ferroada muito dolorosa.
Arraia de água doce camuflada

Mesmo assim, os irmãos e o pastor entraram nas águas para o batismo, e a cerimônia ocorreu sem outros incidentes.
Nessa viagem, tinha levado muitas escovas de dente e flúor para fazer trabalho de prevenção e saúde bucal com as crianças. Eram escovas cedidas pelo Hospital Adventista de Manaus. Era uma excelente maneira de abrir as portas das comunidades e dos lares, porque geralmente ninguém recusava receber uma escova de dente de graça, e então se estabelecia uma ponte de comunicação. Já tinha feito a palestra e distribuído escovas para todas as crianças daquela comunidade.
Palestra e Aplicação de Flúor na Comunidade S. Francisco do Camarão

Crianças da Comunidade e Voluntários da UAP
Então resolvi fazer o mesmo trabalho abrindo portas nas comunidades rio acima, onde não havia presença adventista. Um dos irmãos me passou os nomes das pessoas a quem eu devia procurar quando chegasse lá. Não passava barco todo dia, então eu teria que passar pelo menos dois dias, e essas pessoas iam me receber. Tomei o barco e não perdi tempo. Era um barco com dois conveses (dois "andares"), e fui de rede em rede oferecendo palestras de saúde bucal e aplicação de flúor gratuitas. Todas as pessoas do barco receberam, inclusive o comandante e a tripulação. No final, quando fui descer, nem me cobraram a passagem. Oh Bénção! Desci e logo perguntei pelo agente de saúde. Ele tinha viajado. Perguntei então pelo líder da comunidade. Tinha ido à cidade resolver negócios. Meus dois contatos estavam ausentes. A noite estava chegando. Ao longe via a chuva se aproximando.
Tempestade se aproximando pela direita (em outra ocasião)

Lembrei do verso em que Paulo cita o Antigo Testamento para mostrar que quem trabalha é digno do seu sustento. Deus ia prover comida e lugar para ficar, se eu trabalhasse para Ele. "Porque diz a Escritura: Não ligarás a boca ao boi que debulha. E: Digno é o obreiro do seu salário." 1 Timóteo 5:18. Então decidi fazer o que sabia fazer de melhor por aquela comunidade e reuni todas as crianças que estavam brincando para conversar sobre a saúde dos dentes. No final, se todo mundo estivesse atento, ia ganhar uma escova de brinde.
Crianças de Sta Maria do Poção

Após aplicação de flúor
Estava terminando quando chegaram duas crianças de uns quatro anos de idade. Eram os filhos do líder da comunidade, que tinha acabado de chegar. Depois, fui com eles para falar com seu pai. Pedi a ele autorização para amarrar minha rede embaixo de um galpão para me proteger da chuva e passar a noite ali. Ele disse que eu ia dormir na casa dele. Enquanto me preparava para dormir, ouvi as crianças gritando: "Eba! Pato!", então tive uma dica do que seria a janta naquela noite. Sabendo que o homem era evangélico, da igreja Batista, me preparei para explicar pela Bíblia por quê não ia poder comer pato. Abrindo em Levíticos, vi que para as aves, não existe uma regra geral como para os insetos e mamíferos. Alguns falam que a presença de membrana entre os dedos é uma regra, mas isso não está na Bíblia. Ela apenas dá uma lista de vinte aves as quais não podemos comer. E o pato não se encontra lá. O mais parecido é o cisne e o pelicano. Então, quando o irmão me perguntou se eu comia pato, respondi "Nunca comi não irmão, mas hoje vou comer aqui na casa do senhor." Me esforcei e comi aquele pedaço de carne, orando para não vomitar. Sou ovolactovegetariano, mas pato era o que tinha para comer, e pato eu comi. No dia seguinte, ganhei uma carona até a comunidade seguinte, Vila Fernandes. Lá fiquei na casa do Pr. Sodré e da Pra. Lindalva, da igreja Assembleia de Deus, se não me engano. Me ofereceram para comer "mexira", que eu descobri que é a carne seca do peixe-boi. Claro que recusei! Além de ser carne impura, o pobre animal está ameaçado de extinção! Comprei arroz no mercadinho local e comi com ovos. Ali naquela comunidade há um irmão adventista, o Sr. Doni. À noite, ele e outras pessoas foram até a comunidade e conversamos. A conversa girou em torno de assuntos do interior, especialmente cobras, da lendária Cobra-Grande à misteriosa salamanta (que, apesar das histórias de ser extremamente violenta, sagaz, vingativa, uma pesquisa Google hoje me mostrou que é uma espécie de jiboia, que normalmente é mansa e não peçonhenta). Uma das histórias da Cobra-Grande diz que numa noite, um pescador certa vez viu uma luz vermelha vindo da curva de um rio, e depois surgiu outra luz vermelha, com uma distância boa entre elas, de forma que o pescador deduziu que se tratava de uma balsa (que são embarcações compridas que têm uma luz no começo e outra no final). Quando chegou mais perto, descobriu serem os dois olhos da Cobra-Grande. Essa história serve para mostrar o tamanho imenso que se acredita que esse animal tenha. Outra lenda indígena sobre o surgimento do rio Amazonas diz que certo vez há muito tempo, a lua estava no céu durante o dia, e ficou encantada e apaixonou-se pelo sol; entretanto o sol não deu bola para ela, de forma que ela chorou, chorou até que se formou o rio Amazonas. Na comunidade de Vila Fernandes, vi vários bois andando pela comunidade livremente como se estivessem na Índia. Perguntei de quem eram aqueles bois, e dona Lindalva me disse que eram da comunidade; antes havia um índio que morava ali e sabia domá-los para tirar leite, mas agora não havia ninguém que soubesse manejá-los e eles viviam soltos. No próximo dia, passei na comunidade de São Sebastião da Liberdade (ou Cupu), uma comunidade indígena. Fiz algumas aplicações de flúor mas não houve muito espaço porque aquela comunidade já era bem assistida na parte odontológica pelos órgãos do governo de apoio aos indígenas. Depois tomei outro barco e voltei a me juntar a equipe da Luzeiro na comunidade São Francisco do Camarão.

Gabriel

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

The Man Who Used to Fall

Em 2012, o Amazonas sofreu a maior enchente já registrada, e a ADRA atuou ajudando as populações ribeirinhas afetadas. Naquele ano, escrevi esse relato da experiência de ajudar um senhor em uma das comunidades; era para algum documento de pedido de ajuda da ADRA Internacional, mas creio que nunca foi publicado, então estou postando aqui.