Vou utilizar essa postagem como uma cápsula do tempo. Como completei 10 anos de Manaus esses dias, e com a perspectiva de ir embora para outro campo missionário no ano que vem, resolvi passar para a nuvem algumas histórias que vivi na Amazônia antes que se percam os pedacinhos de papel onde anotei os resumos delas. Seguem abaixo algumas.
Em 8 de dezembro de 2007, desci no aeroporto de Manaus pela primeira vez e meus pais, que já estavam aqui, me buscaram e me levaram para um auditório onde estava acontecendo o I Encontro de Voluntários do Amazonas. Ali conheci entre outras pessoas, o Dr. Ricardo Faria e o missionário Bradley Mills, que estavam à frente do trabalho missionário com barcos no Amazonas.
Em 2008, Brad me convidou para participar como tradutor em uma das missões do Flying Doctors of America. Fomos eu, ele e outro rapaz como tradutores. A viagem foi em direção a Coari, e foi bem diferente, porque os costumes e princípios deles são muito diferentes dos nossos, como por exemplo o consumo de álcool e a crença na pessoa de Deus. Em 2014, 06 anos depois, quando fiz uma viagem a Israel, encontrei em Jerusalém um dos médicos que estava nesse grupo.
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Equipe do Flying Doctors of America |
Em 2009, havia feito contato com o Brad me colocando à disposição para participar em alguma viagem missionária nas férias da faculdade. As férias se aproximavam e parecia que eu não iria ter nenhuma oportunidade de trabalhar em uma missão de verdade. Nosso apartamento estava em reforma, e num dos momentos de ansiedade, entrei no banheiro para orar mais isolado dos pedreiros que estavam trabalhando na casa. Orei para que Deus me chamasse para alguma missão. De repente, o telefone toca na sala. Será que é a resposta do Senhor? Tão rápido! Quando atendo, era o Bradley me convidando para participar de uma missão com a Southern Adventist University numa tribo indígena distante. É claro que eu queria ir! Obrigado Senhor, por ouvir nossas orações e responder antes mesmo de terminarmos de orar. "Antes mesmo de rogarem Eu os atenderei; ainda estarão falando, e Eu já os terei ouvido!" Isaías 65:24 Nessa viagem à aldeia indígena de Ponta Alegre, pude participar com meu primo Hygor, que também ia se tornar médico.
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Crianças da Comunidade de Ponta Alegre - Rio Andirá |
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Líderes indígenas da comunidade de Ponta Alegre - Rio Andirá |
Depois que cheguei a Manaus, li o livro "Leo Haliwell na Amazônia", de Olga Streithorst, e fiquei empolgado com o trabalho das lanchas Luzeiro. Infelizmente, as lanchas haviam parado de circular desde por volta do ano 2000. Em 15 de maio de 2010, ocorreu um grande movimento adventista no Brasil, o Impacto Esperança, quando todos saíam de suas igrejas no sábado de manhã para distribuir um livro que falava de esperança. Para marcar a ocasião, o trabalho das lanchas Luzeiro foi oficialmente reinaugurado, com o lançamento da lancha Luzeiro XXVI.
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Luzeiro XXVI |
Um grupo de médicos do Hospital Adventista de Manaus foi navegando na lancha até algumas comunidades próximas onde fizeram atendimentos gratuitos, além de distribuírem o livro missionário. Foi emocionante saber que novamente um barco com o nome Luzeiro iria levar esperança aos ribeirinhos.
Em janeiro de 2011, novamente em férias, e desta vez sem ter sido chamado para nenhuma missão, além de orar, decidi ligar para o Brad. Ele atende mais surpreso do que eu, e explica que não sabe como o celular ainda pegava sinal, visto que já tinha viajado bastante para dentro do rio Manacapuru, e para fora das cidades não há sinal. Infelizmente a viagem missionária havia acabado de começar. Eles estavam indo junto com a família Tosta fazer um evangelismo e obra médico-missionária acima de Rosa de Saron, na comunidade de Dominguinhos, rio Manacapuru. Eram dois barcos na missão, a Luzeiro XXVI, de alumínio, bem equipada com radar, sonar e GPS, e o Salva-Vidas Amazônia III, um barco de madeira ao estilo regional. Apesar de ter sido inaugurada em maio de 2010, foi somente em janeiro de 2011 que ela realmente ficou pronta para viagens mais longas, e essa era a primeira viagem dela desde então. Brad me informou que uma enfermeira da ADRA, Emely Ganoza, havia ficado para trás, por algum motivo, e iria encontrar o grupo alguns dias depois, pegando um barco de passageiros no porto de Manacapuru. Ele me disse que eu poderia ir com ela se quisesse. É claro que eu queria! Fiz minha mala e logo estava em Manacapuru para seguir viagem. Na época, não havia ainda a ponte sobre o rio Negro, então tomávamos um barco que atravessava o rio, ou íamos pela balsa de carros, que era mais lenta. Do outro lado havia taxis que fechavam pacote com um grupo de passageiros para ir até Manacapuru, uns 80 km dali. De lá, um barco de madeira fazia o percurso até Rosa de Saron.
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No Barco em Direção a Rosa de Saron |
Era muito bom ser útil. Lá conheci o comandante da Luzeiro, Sr. Eraldo. Ele estava lavando o casco da lancha por fora e eu tive o maior prazer de ajudar, sabendo que aquela era uma lancha histórica para a igreja adventista. O Sr. Eraldo é um senhor magro, simples, não gosta de aparecer em público, mas muito forte e determinado, e com muita experiência. Já havia sido comandante de outras Luzeiros. Para ilustrar seu espírito despretensioso, vou contar um episódio. Mais tarde naquele mesmo ano, houve em Manaus uma cerimônia de celebração de 80 anos das Luzeiro, no auditório do Canaã, um auditório lotado com milhares de pessoas. Lá todos os ex-comandantes de Luzeiros e pastores que serviram a bordo das lanchas foram à frente receber uma homenagem, todos estavam bem vestidos, alguns com terno e gravata. Sr. Eraldo estava sentado como expectador, junto com um grupo de voluntários, usando suas roupas comuns, uma calça simples e uma camisa de manga comprida vermelha com um número 9 gigante estampado na frente; ele nunca imaginou que seria chamado à frente e não havia se arrumado de acordo. Qual foi a sua surpresa quando ouviu seu nome! Apesar de surpreso, foi lá à frente receber a sua homenagem junto com os demais, permanecendo em pé junto na frente, meio constrangido. Nesse primeiro contato, ainda não conhecia bem o Sr. Eraldo, mas acabamos desenvolvendo uma amizade e confiança muito grandes. Certa vez, pedi a chave de uma das voadeiras para levar alguns voluntários para tomar banho no meio do rio, à noite, e ele deixou. A água da beira do rio é onde as casas e alguns barcos despejam os dejetos, onde as pessoas tomam banho, e a água do meio do rio é muito mais limpa. Então fomos. Entretanto à noite, todo tipo de animal noturno está no rio, e nossa visão é limitada, especialmente nas águas escuras. Já ouvi vários ribeirinhos corajosos dizerem que não têm coragem de nadar no rio à noite. Mesmo assim, fomos e voltamos sem nenhum problema. Como a voadeira ficou cheia de água depois do banho, resolvi usar um truque que havia aprendido para tirar água da voadeira. Tirei uma espécie de rolha do fundo e começou a entrar mais água. Em seguida, acelerei e dessa forma, a água foi se esvaziando até ficar quase seco. Coloquei a rolha de volta e voltamos para a lancha. Algum tempo depois, na mesma noite, Sr. Eraldo pergunta quem foi a última pessoa a usar a voadeira. Fui eu, respondo. Ele, sem falar uma palavra, vai até a voadeira. Eu o sigo. Que cena! O motor 15HP está quase metade pra dentro d'água, junto com toda a voadeira. Sr. Eraldo pega um pote e começa a retirar a água de dentro. Certamente eu não havia fechado a rolha direito e o barco foi afundando. Uma palavra de reprovação não teria sido tão dolorosa quanto aquele silêncio. Passei a ser muito mais cuidadoso a partir daí. Durante as missões, esforçávamos para ajudar aquele senhor nas questões de saúde. Por exemplo, ele gostava de refrigerantes, embora via de regra utilizamos a alimentação mais saudável possível a bordo, o que não inclui essas bebidas. Quando chegávamos a uma comunidade, o Sr. Eraldo se dirigia a um comércio local e perguntava: "O senhor vende suco de uva da Superbom?" A resposta sempre era "Não"; em Manaus é difícil encontrar esse suco nos supermercados, que dirá num comércio de comunidade ribeirnha; os vendedores nunca nem tinham ouvido falar de Superbom. Então o Sr. Eraldo dizia "Ah, então me veja uma Coca-Cola mesmo". Essa era a desculpa para se tomar refrigerante. A história de conversão do Sr. Eraldo é incrível e foi até relatada no Informativo Mundial das Missões do primeiro trimestre de 2016.
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Comte Eraldo em frente à Luzeiro XXVI |
Voltando à história original, enquanto lavava o casco da Luzeiro com aquele senhor, eu mal sabia as aventuras que ainda viveria naquele barco e com aquelas pessoas.
A missão da família Tosta terminou e todos voltaram para Manaus na Salva-Vidas III, junto com o Brad, enquanto eu fiquei na Luzeiro com o Sr. Eraldo, a enfermeira Emely e outra enfermeira, Karla Wallauer. Estávamos aguardando a vinda do diretor da ADRA Amazonas, Pr. Landerson Santana, que iria continuar viajando conosco rio Manacapuru acima. Como eu estava em férias, preferi permanecer. O Sr. Eraldo então pegou a voadeira (lacha menor) e partiu descendo em direção à cidade Manacapuru para buscar o pastor, e só voltaria no dia seguinte. Senti o peso da responsabilidade de ser o "homem do barco", com 21 anos, e nunca ter navegado num barco antes. Com o fim de saber responder caso alguma autoridade perguntasse, fui olhar os documentos do barco, e descobri a carteira de piloto do Sr. Eraldo. A data de aniversário dele tinha passado durante aqueles dias da missão e ninguém havia falado nada! Com certeza ele merecia receber uma festa de aniversário surpresa quando voltasse.
No dia seguinte, quando ele voltou, seguimos viagem rio acima. O objetivo do Pr. Landerson era chegar à última comunidade daquele rio, São Miguel, com o intuito de preparar caminho para uma outra missão com um grupo de estudantes de enfermagem do UNASP que ocorreria logo depois. Partimos mesmo sem ter um GPS com rota marcada, pois um dos ribeirinhos do local, o irmão Amair, conhecia bem o rio, e iria conosco. Enquanto Sr. Eraldo pilotava, as moças prepararam um bolo de aniversário surpresa na cozinha minúscula, tinha cerca de 01 metro por 01 metro. Escurecendo, paramos para passar a noite. O irmão Amair não estava muito certo da direção que estávamos seguindo, e como vimos uma luz de barco passando à distância, ele foi de canoa remando até lá para encontrar o barco e pedir informações. Estávamos num local onde o rio faz estava largo com o rio cheio, e um capim comprido fazia bonitas ilhas verdes na paisagem. Mais à frente o rio ia se bifurcando e apenas uma entrada era a que queríamos. Na seca, as outras entradas ficam mais baixas ou secam, mas a principal permanece, e é chamada a "mãe-do-rio". Não era muito comum encontrar outros barcos passando por ali, portanto tínhamos que aproveitar aquela oportunidade. Quando o irmão Amair se encontrou com o barco, ficou surpreso de ver que era um conhecido, o Sr. Eliseu, que transportava madeira. Ele disse que também passaria a noite ao lado do nosso barco, e que na manhã seguinte poderíamos seguir juntos. Ali cantamos parabéns para o Sr. Eraldo, e dormimos. Era um bolo sem fermento mas estávamos todos felizes.
No dia seguinte, acordamos com a popa (parte de trás do barco) alguns centímetros debaixo d'água. Abrimos a tampa do porão na popa e ele estava cheio de água. A bomba que fica lá para escoar a água que eventualmente entra no porão não era suficiente pra escoar. Entramos no porão um por vez para tirar a água com baldes, mas o nível da água lá dentro só subia mais e mais. Quando os homens avaliaram, descobriram uma rachadura enorme no casco. O Sr. Eliseu, do barco que estava do nosso lado, tinha uma bomba de água reserva, bem potente, e emprestou para nós. Só assim o nível da água foi baixando. Ao mesmo tempo, colocaram uma vedação temporária na rachadura para impedir que a água entrasse num fluxo tão alto para dentro do barco. E se aquele outro barco não estivesse ali naquela exata hora? E se ele não tivesse uma bomba extra tão potente? Para todos os lados que olhávamos, era só rio e floresta em volta, e por muitos quilômetros. Claramente uma providência de Deus!
Daquele jeito, não poderíamos seguir viagem. Combinamos que o barco voltaria para Manacapuru ser consertado, e que as enfermeiras seguiriam viagem no barco do Sr. Eliseu até São Miguel para preparar o caminho. Depois devolveríamos a bomba do Sr. Eliseu e encontraríamos as moças. O Pr. Landerson passou boa parte da comida do barco para o outro. Como a enfermeira Emely por algum motivo estava sem a sua lição da Escola Sabatina, eu dei a minha pra ela, afinal eu morava perto da loja da Associação, o SELS, e nos próximos dias eu estaria em casa e poderia comprar uma nova para mim.
Na viagem de volta, estávamos eu, Pr. Landerson, Sr. Eraldo e o irmão Amair. A bomba para retirar água tinha que ser ligada a cada 03 horas para retirar a água que se acumulava no porão. À noite, o barco ficou encostado em uma área rasa cheia de plantas aquáticas para passarmos a noite. Fizemos uma escala para que cada um acordasse em determinado horário da noite para ligar a bomba. Eu não me lembro bem, mas acho que fiquei com o horário das 03 da manhã. Atei minha rede na lateral do barco, coloquei o despertador para o horário marcado e dormi tranquilamente. Acordei com o sol batendo no meu rosto, lá pelas 07 da manhã. De um pulo, corri para ver se o barco estava afundando, e ia ser tudo minha culpa! Lá estava acordado o Sr. Amair, que disse que tinha me coberto na minha vez. Ufa!
Voltando para Manaus, tentei fazer um curso de férias em oftalmologia, mas por algum motivo, não foi possível. Dessa forma, fiquei com muita vontade de poder participar da missão do UNASP que o Pr. Landerson tinha falado, mas ninguém tinha me convidado, e também não tinha intimidade nem o telefone de nenhum deles. Orei a Deus, mas confesso que tinha pouca esperança de participar. Então, fui à pé à sede da Associação Central Amazonas, perto de casa, para comprar uma nova lição da Escola Sabatina para mim. Peguei a lição e me dirigi ao caixa. Quem estava lá na fila? Pr. Landerson! Que surpresa!
Conversamos um pouco e ele disse que estava indo se encontrar com a dentista que atenderia na missão do UNASP, e, como tinha chegado há pouco tempo a Manaus, ainda não sabia andar bem. Eu logo me ofereci para ajudá-lo. Estava de férias! Então fomos juntos. Buscamos a dentista, Cione, e fomos comprar os materiais para a cadeira odontológica da Luzeiro XXVI. Sugeri a loja do irmão Renck, e lá ele nos recebeu muito bem, e não cobrou nada pelos produtos! Na conversa, Cione disse que não poderia ir no mesmo dia que o barco partiria, somente no dia seguinte. O barco não podia esperar por ela, então o Pr. Landerson sugeriu que ela fosse até Manacapuru que eles mandariam uma voadeira buscá-la. Ela não sabia fazer o caminho até Manacapuru sozinha, então eu me ofereci para levá-la, e de quebra ganhar uma entrada naquela missão que eu estava sonhando em ir. Já tinha feito aquele percurso alguns dias antes. O Pr. Landerson concordou.
No dia marcado, pegamos cedinho o barco para atravessar o Rio Negro, do outro lado pegamos um taxi e chegamos a Manacapuru, no porto combinado, o porto de Terra Preta. Era uma quarta-feira, 19 de janeiro de 2011. Tínhamos combinado que o irmão Amair viria de voadeira nos buscar às 08 horas da manhã nos levar para o barco principal, que já tinha partido nos dias anteriores. A hora marcada passou e nada de vermos o irmão. Não tínhamos o número do Amair. A equipe que estava no barco estava incomunicável porque lá não tem sinal de celular. Chegou a hora do almoço e nada. A dentista me perguntou se achava melhor voltar para Manaus. Alguma coisa deveria ter acontecido e eles não iam aparecer. Eu a animei a esperar mais. Talvez ainda chegassem. Se Deus tinha me levado até ali, era difícil acreditar que ele ia querer que voltássemos. Escureceu e decidimos procurar a igreja adventista, explicar a situação para os irmãos e pedir ajuda para conseguir algum barco que fosse para aquela direção no dia seguinte. Depois do culto, uma irmã nos abrigou em sua casa aquela noite. Durante aquela noite, a Cione passou a noite toda em oração com aquela irmã, que estava passando um problema grave no casamento. Ficamos pensando que talvez Deus tivesse permitido que nos atrasássemos para poder ter aquele momento de auxílio para aquela irmã. Na eternidade poderemos saber.
No dia seguinte, descemos ao porto. A beira do rio em Manacapuru e várias cidades do Amazonas é cheia de lojas, casas, portos e até postos de gasolina flutuantes. Alguns são construídos sobe grossos troncos de um tipo especial de madeira que flutua, outros têm boias alumínio feitas para isso, e em cima a casa ou loja é construída. Eles têm a vantagem de não serem inundados pelas cheias, como as palafitas.
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Posto de Gasolina Flutuante da Petrobrás |
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Alguns Flutuantes em Frente ao Porto de Manacapuru |
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Casa flutuante sendo transportada na Amazônia |
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Igreja Adventista em formato de palafita na Amazônia |
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Ficam não muito longe da margem, ligados por uma ponte. Os ribeirinhos de vez em quando vêm do interior para a cidade comprar algo de que necessitam, e os flutuantes são a primeira coisa que encontram. Então ali se vende de tudo, desde redes, pilhas para lanterna, farinha, até motores e barcos. Eles ficam bem perto uns dos outros, e as pessoas colocam algumas pontes de tábuas para preencher os vãos e permitir a passagem de um flutuante para outro, sem ser preciso ir à terra. Os barcos de quem vem e vai para o interior geralmente ficam amarrados nesses flutuantes. Ali, em um dos flutuantes, encontramos o barco que iria para nosso destino, mas somente no dia seguinte. Seria tarde demais porque nesse dia o barco da missão já estaria muito longe. Onde quer que perguntávamos, ninguém sabia de nenhum barco que fosse para lá naquele dia. Até encontramos um outro que iria, mas era um madeireiro ilegal, que saía à noite, com todas as luzes apagadas para se esconderem da capitania, e com uns vinte homens estranhos. Não parecia uma boa ideia.
Então saí caminhando de flutuante em flutuante, em oração, pedindo a Deus que me mostrasse o barco. Dizia "Senhor, já perguntamos e ninguém sabe, mas se tiver um barco que vá para o rio Manacapuru, o Senhor sabe; será que o Senhor nos trouxe até aqui só para voltarmos?" Então parece que ouvi uma voz dizendo "pergunte a esse homem". Perto de onde eu estava caminhando tinha um vendedor sentado, com um saco de grãos do lado. Não me parecia alguém que soubesse dar informações, então ignorei a voz e continuei andando. Fui perguntando das pessoas que, na minha cabeça, com certeza saberiam sobre o tal barco. Em vão. Voltei pelo mesmo caminho e passei de novo perto daquele homem. Me lembrei da voz e, agora já quase desistindo, resolvi perguntar. Minha surpresa foi grande quando ele respondeu "Sei sim, é esse barco que está bem aí na frente. Vai partir agora às 10h". Que maravilha! Deus é fiel! Já era cerca de 09h30m então corri para chamar a Cione, buscar as coisas e nos despedir dos irmãos. O barco era o Comte Frank, um barco estilo regional, mas pequeno, com apenas um convés, que transportava mercadoria e também levava passageiros por um preço justo. Ele não iria chegar na comunidade que queríamos, Rosa de Saron, onde a ADRA tem uma base, mas chegaria perto, na comunidade anterior, São Tomé do Umari, que fica 30 minutos antes. Decidimos ir, sabendo que Deus tinha guiado até ali e continuaria guiando para chegarmos ao destino final.
A viagem levava cerca de 08 horas. Os passageiros colocam cada um a sua rede e vão deitados tranquilos. Eu e Cione só tínhamos a minha rede, então revezávamos. Dependendo de quão lotado está o barco, as redes chegam a ficar tão próximas que no mesmo lugar já vi até quadro "andares" de rede, uma em cima da outra, como um beliche, só que de redes. Toda vez que o barco para num porto para buscar passageiros, você deve permanecer na sua rede, senão as pessoas que entram podem amarrar uma bem em cima da sua e você ser obrigado a sair, ou se conformar em ficar esmagado embaixo de outra pessoa.
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Pessoas viajando de barco na Amazônia |
O Comte Frank não estava lotado, mas as redes estavam perto o suficiente para um poder ler o livro que o outro estava lendo. Foi dessa forma que enquanto estava lendo a Bíblia, um senhor do meu lado puxou assunto sobre a Bíblia. Era o Sr. Alfredo, dono de um flutuante que vendia mercadorias em uma comunidade daquele rio (Mamoal). Lembro que estava lendo o Gênesis, mas logo da Criação passamos ao sábado, à primeira mensagem angélica, profecias de apocalipse e muito mais. Essas viagens longas são uma ótima oportunidade para pregar. Tenho certeza que muitos missionários já aproveitaram essas horas nos barcos para pregar o evangelho. Ele era de uma outra denominação protestante. A princípio não, mas depois foi concordando e vendo a verdade conforme está na Bíblia. Num instante, sentimos um puxão. Os barcos no Amazonas não possuem freio, o que faz eles diminuírem a velocidade e pararem é a marcha à ré. Nessa hora, o barco tinha ido deixar um passageiro, a ré não funcionou, e acabou encalhando no barranco. Foi preciso que vários homens descessem e ajudassem a empurrar o barco de volta para o rio. Seu Alfredo e eu fomos ver o que estava acontecendo. Depois que voltamos às nossas redes, ele foi e ficou um tempo longe e não tocou mais no assunto. Só Deus sabe o que aquele sementinha pode ter produzido na vida dele. Pouco adiante ele desceu em sua casa, a comunidade Mamoal. Algum tempo depois, soube que uma equipe da Missão Calebe foi para essa comunidade, mas não tive mais notícias dele. Quem sabe se Deus permitiu que todo aquele desencontro acontecesse para que a mensagem fosse levada a esse homem!
Chegamos a São Tomé do Umari ao escurecer. Era o ponto final do Comte Frank. Fomos informados que havia ali um senhor que possuía uma voadeira motor 15HP que talvez poderia nos levar ao nosso destino se lhe déssemos a gasolina. Subimos o íngreme barranco da comunidade e achamos a casa do Sr. Nilton. Era um senhor forte, escuro, muito simpático. Prontamente nos convidou a entrar e jantar com sua família. Estavam comendo porco. Agradecemos mas declinamos o convite. Ele perguntou do que se tratava e explicamos nossa situação. Então disse que poderia nos levar sim, desde que déssemos a gasolina. Inclusive disse que só tinha a gasolina de ida. Eu falei que poderíamos lhe repor a gasolina assim que chegássemos lá. Eu não tinha nenhuma gasolina comigo, mas tinha fé que encontraríamos a Luzeiro e o Sr. Eraldo iria repor a gasolina dele. Assim partimos no escuro, literalmente, e também simbolicamente porque não era certo que ainda encontraríamos a Luzeiro em Rosa de Saron. Um rapaz foi à frente da canoa com uma lanterna potente focando as margens do rio, e Sr. Nildo foi atrás controlando o motor. Durante o percurso, às vezes o facho da lanterna fazia refletir pares de pequenas luzes. Eram os olhos dos jacarés. Quando estávamos chegando, que cena linda foi ver se formando o formato branco da Luzeiro XXVI no horizonte, um barco que leva luz às trevas!
Em Rosa de Saron, Sr. Eraldo estava sozinho. Os outros tinham ido no Salva-Vidas III, para a comunidade de São Miguel. Lá ele nos recebeu, pagou a gasolina do Sr. Nilton e passamos a noite na Luzeiro. Tempos depois voltamos à comunidade de São Tomé do Umari e o Sr. Nilton foi atendido pela minha mãe (que é oftalmologista) no mutirão e até ganhou um óculos dos vários que foram doados.
Na manhã seguinte partimos cedinho na Luzeiro XXVI para encontrar o resto do grupo. O planejado era a Luzeiro ficar, mas o Sr. Eraldo disse que se tínhamos chegado até ali, ele iria nos levar até São Miguel. Ou melhor, Jesus iria nos levar e ia ser o comandante, porque não havia rota salva no GPS para lá, e nenhum de nós sabia o caminho. A esposa do irmão Amair, que tinha ficado, foi conosco para encontrar o esposo. Partimos os quatro cedinho, ao nascer do sol, subindo o rio. Paramos na comunidade seguinte e perguntamos se alguém poderia nos acompanhar e ajudar a acertar o caminho. Poderia ser para a pessoa pegar uma carona, mas Sr. Eraldo também estava disposto a pagar por um guia, mas ninguém conhecia o caminho, ou podia ir. Então saímos e continuamos viagem. Em várias vezes, o rio se bifurca, e é difícil saber qual das duas bifurcações é o rio principal, e qual era um afluente. Eu subi até a parte mais alta do barco e ajudava a ver se era afluente ou não. Que cenas lindas de floresta intocada se desdobravam diante de nós. Oramos e seguimos em frente até chegar ao destino final. Algumas vezes entramos no lugar errado, mas logo percebíamos e voltava ao principal. Depois de cerca de dois dias encontramos o barco com o outro grupo em São Miguel (contei 7 vezes em que erramos o caminho; desde um volta rápida em que perdemos só 10 minutos até um erro maior em que talvez perdemos umas 4 horas). Cione pôde fazer os atendimentos e a missão foi concluída com sucesso. Deus é maravilhoso!
Gabriel